Princípios Técnicos do Trabalho do Ator-Animador

04/11/2010

por Valmor Níni Beltrame*

.

A década de 1980 pode ser considerada um período importante para a compreensão das mudanças ocorridas no campo do teatro de animação, notadamente no que diz respeito à formação do ator-animador. Nesta época surgiram importantes escolas dedicadas à esta arte, sobretudo na Europa. Na América Latina, diversas escolas foram criadas na Argentina, em cidades como Buenos Aires e Rosário. No Brasil, mais recentemente, essas iniciativas são registradas em Belo Horizonte com o Grupo Giramundo Teatro de Bonecos e em São Paulo com a Cia. Truks e com o Grupo Sobrevento.  As discussões sobre o domínio das técnicas de atuação nas diferentes linguagens que envolvem o teatro de animação têm merecido a atenção de professores e pedagogos do teatro nestas escolas.

Este estudo pretende discutir duas questões: a importância da técnica para o trabalho deste artista, destacando que, o seu domínio não pode ser visto como um fim em si; e sistematizar alguns princípios técnicos inerentes ao trabalho do ator-animador evidenciando que o seu trabalho exige, de um lado, a apreensão de saberes específicos sobre teatro de animação, e de outro, a compreensão de que esta arte está inserida num campo mais amplo, ou seja, o da arte do teatro.

 

A importância da técnica – Um dos maiores desafios profissionais e artísticos do ator-animador é dominar as técnicas de animação do boneco. Apropriar-se das técnicas de manipulação tem por objetivo garantir certa unidade ou sintonia entre animador e boneco. Significa ainda encontrar os gestos adequados para as ações cênicas a serem efetuadas pela forma animada, o boneco. Lembrando Gervais:

A técnica pretende adquirir desembaraço na manipulação, onde o boneco se confunde com aquele que o mantém e onde os sentimentos de um são imediatamente expressos pelo outro. Para atingir este fim, é preciso ser capaz de se esquecer dos meios de expressão, e por conseqüência, possuir o desembaraço absoluto. (GERVAIS, 1947, p. 03)

É fundamental o ator-animador transferir ao objeto a emoção que corresponde à personagem, caso contrário, por melhor que se mova, o ato é mecânico. O trabalho com o boneco se situa no paradoxo de mostrar o humano presente no objeto, o real e o irreal que a atuação do ator-animador torna crível.

Como diz Dufrenne (1998, p. 114), “seu papel [o do artista] é dar a impressão de que o objeto se expressa por si mesmo”. Importante é o ator-animador principiar seu trabalho aberto às diversas possibilidades, disposto a fazer descobertas, pré-disposto a se surpreender com o boneco com o qual vai atuar para poder chegar a definições iniciais de um repertório de gestos. São “definições iniciais”, pois a prática demonstra que é exatamente essa abertura ou disponibilidade que permite ao ator-animador ampliar a sua técnica. Além disso, a totalidade de gestos que integram as ações cênicas do boneco constitui-se em permanente construção que vai eliminando e acrescentando detalhes e sutilezas.

É com essa compreensão que o ator-animador descobrirá a linguagem específica do teatro de bonecos. Adelaida Mangani sintetiza a importância das técnicas de animação, e enfatiza que os desafios de animar o boneco não constituem um fim em si, mas possuem estreitas relações com o espetáculo:

É fundamental que o objeto/boneco tenha o que transmitir. É importante destacar isso porque aparecem grupos com orientação na busca de técnicas de manipulação de grande precisão. Inventam mecanismos bastante sofisticados para conseguir movimentos tão perfeitos para que os bonecos pareçam humanos e possam encantar as platéias até o assombro. (MANGANI, 1998, p. 12)

A diretora não nega a importância dos processos de confecção e manipulação; no entanto, insiste em que o trabalho do artista vai além disso. Nas suas atividades de diretora teatral e pedagoga, quando percebe que seu elenco fica obsessivo na busca do movimento, alerta: “o que estamos fazendo não é só um trabalho técnico, mas espiritual.”

Ou como prefere Margareta Niculescu (1998, p. l08): “a técnica não é tudo… se não há imaginação, se não existem sonhos artísticos, é somente técnica.” O que se depreende das afirmações é que no trabalho do ator-animador, os aspectos técnicos são fundamentais, mas é equivocado centrar o seu trabalho neste único aspecto. Como prefere Erulli: “Para escrever um poema é preciso dominar a língua, mas também é preciso ter algo a dizer” (1994, p. 10). Por isso, conteúdo e forma estão de tal maneira interligados que não é possível concebê-los dissociados.

O desafio do ator-animador consiste em fazer a personagem-boneco atuar, em dar organicidade a essa relação. Quanto maior for sua capacidade de fazer o boneco atuar, mais estará sintonizado com a linguagem do teatro de animação.

A pesquisadora francesa Hélène Bourdel faz interessante analogia entre a animação feita pelo ator-bonequeiro e o trabalho do músico instrumentista:

[…] é possível dizer que a marionete é um instrumento, a animação uma técnica instrumental e o marionetista um instrumentista. Para isso deve dominar sua técnica, trabalhá-la. A relação que o marionetista estabelece com o objeto marionete é comparável à relação músico-instrumento: disciplina corporal adaptada às suas possibilidades e às exigências do instrumento; importância de uma dinâmica corporal, respiração, mobilidade dos dedos, são processos que ele precisa dominar em seus detalhes. Assim os termos “técnica” e “instrumento” não são redutores. Como na música, eles dão lugar à sensibilidade e à intuição criativa. (BOURDEL, 1995, p. 140)

As reflexões da autora ajudam a compreender a importância de o ator-animador dominar as técnicas, mas reforça a necessidade de formação sistemática contínua, pela qual adquira disciplina corporal, treino com o “instrumento” com o qual vai se expressar e a apreensão de conhecimentos que envolvem a profissão.

 

Princípios da linguagem – Para conseguir a interpretação adequada, os grupos de teatro de animação trabalham com certas “normas” que vistas em conjunto e de forma interligada definem princípios dessa linguagem teatral. São princípios como:

A economia de meios, princípio que trabalha com o mínimo de recursos para realizar determinada ação. Implica em selecionar os gestos mais expressivos, o movimento preciso, limpo, sem titubeios e claramente definido. É como compreender que “menos vale mais,” ou seja, não é a quantidade de gestos que garante a qualidade da ação.

Foco é a definição do centro das atenções de cada ação. A noção de foco pode ser exemplificada em momentos em que o boneco projeta seu olhar para o objeto ou personagem com que contracena. Quando existem diversos bonecos em cena e apenas um está realizando alguma ação, todos dirigem seu olhar ao que age. Isso dá a noção de foco, define o lugar para onde o público deve concentrar seu olhar. O foco é um dos principais meios de comunicação entre as personagens, e isso se dá entre elas mesmas ou com a platéia.

O olhar como indicador da ação. É comum ouvir de atores-animadores que “o boneco olha com a cabeça e não apenas com o olho.” Olhar adquire importância fundamental quando o boneco, antes do início de determinadas ações, olha para o ponto exato de deslocamento. A precisão do seu olhar indica ao espectador o que deve ser observado. Isso exige um amplo e definido movimento da cabeça, para dar a clara sensação de que o boneco olha. Este princípio também se realiza quando o ator-animador percebe a importância da inclinação da cabeça do boneco direcionada ligeiramente para frente. Essa inclinação elimina uma dificuldade presente na prática de muitos bonequeiros iniciantes que, sem perceber esse princípio, animam o boneco com o olhar direcionado para o fundo da sala e numa altura que impede que o boneco olhe para o público. O olhar pode ser diferenciado conforme a velocidade e a intensidade do movimento do boneco, e apresenta qualidades diferentes para cada situação. Michael Meschke apresenta alguns tipos de olhares a serem observados pelo ator-animador:

Olhar de seguimento: é aquele que segue algo ou alguém, mostrando que algo se move.
Olhar de reação: é aquele onde o personagem mostra com o olhar que compreendeu algo e qual é a sua reação diante disso.
Olhar de descobrimento: mostra o surgimento de algo novo, inesperado.
Olhar interior: é o olhar sem objetivo explícito, expressa um estado de reflexão. (MESCHKE, 1988, p. 61-62)

A triangulação recurso que se realiza com o olhar e colabora para “dialogar” com o espectador, fazendo-o “entrar” na cena. Trata-se de um “truque” efetuado com o olhar para mostrar ao espectador o que acontece na cena, evidenciar a reação de uma personagem, destacar a presença de um objeto. O boneco interrompe a ação com o objeto (congela), dirige o seu olhar ao público, volta a olhar para o objeto e reinicia a ação. Uma das maneiras mais comuns de realizar a triangulação é quando existem dois bonecos dialogando em cena, o que fala e age, olha para o público e é observado pelo outro boneco que permanece imóvel olhando. Ao terminar sua fala ou ação, devolve o olhar para o outro boneco e os papéis se invertem. Ou seja, este age e fala olhando para o público enquanto é observado pela outra personagem. Faz-se o triângulo, a personagem que atua, o público e a segunda personagem. Isso também define o foco da cena e capta a atenção do espectador.

Partitura de gestos e ações é a escritura cênica definindo detalhadamente a seqüência de movimentos, ações e gestos de cada personagem no espaço, em cada uma das cenas do espetáculo. É importante que a construção da partitura considere os níveis eucinético e coreológico. Milton de Andrade e Samuel Petry, ao estudarem a partitura de ações para o trabalho do ator-dançarino afirmam:

No nível eucinético da partitura, são determinados os seguimentos da ação, as diversas qualidades de energia, as variações do ritmo e a orquestração das relações entre as diversas partes do corpo do ator. A coreologia trata dos desenhos e das projeções do movimento expressivo no espaço geral, amplificado para fora e para além do corpo do ator-dançarino em forma de desenho espacial. É o estudo da forma construída sobre elementos direcionais e sobre as leis de estruturação e de configuração espacial do movimento. (ANDRADE e PETRY, 2007, p. 180)

A construção da partitura é uma criação do ator-animador em parceria com o diretor, obedecendo determinações das técnicas de animação, a matéria com a qual foram confeccionados os bonecos, as articulações da sua estrutura física, e a conduta da personagem.

Subtexto é uma criação subjetiva do ator-animador pautada nas intenções de cada personagem, e que apóia a construção e apresentação da partitura de gestos e ações. Conforme Patrice Pavis, é

[…] aquilo que não é dito explicitamente no texto dramático, mas que se salienta na maneira pela qual o texto é interpretado pelo ator. O subtexto é uma espécie de comentário efetuado pela encenação e pelo jogo do ator, dando ao espetáculo a iluminação necessária à boa recepção do espetáculo. (PAVIS, 1999, p. 368)

O eixo do boneco e sua manutenção – Consiste em respeitar a estrutura corporal e sua coerência com a coluna vertebral do ser humano, ou obedecer à postura animal quando a personagem é dessa origem. É importante aproximar o boneco da forma “natural” da personagem que representa. Exige observar a posição das pernas, coluna vertebral, verticalidade do corpo do boneco quando se trata de boneco do tipo antropomorfo. Quando o ator-animador não mantém o eixo corporal do boneco, colabora para a perda da credibilidade da personagem em cena porque evidencia que está sendo manipulada.

Definir e manter o nível é um princípio que também colabora para dar credibilidade à personagem. O chão estipulado pela empanada é a referência que o ator-animador tem para posicionar seus bonecos estabelecendo assim sua verticalidade, dando a impressão que estes se encontram em pé. Os bonecos, em cena, quando atuam detrás da empanada não mostram suas pernas. Na verdade, a maioria não as tem, mas dão a impressão de possuí-las. É um recurso importante para a manipulação do boneco e define o tamanho, a altura do boneco e sua manutenção na cena. É freqüente o ator-animador menos experiente, depois de iniciar a apresentação mostrando o boneco de corpo inteiro, ir diminuindo seu tamanho, como se o boneco fosse lentamente caindo num fosso. Vencido pelo cansaço, ele vai arreando seu braço e conseqüentemente o corpo do boneco, deixando visível ao público apenas a sua cabeça. É interessante observar o ato de juntar um objeto caído no chão: atores-animadores mais experientes dobram o pulso e assim dão a impressão de que o boneco faz o justo movimento do corpo humano para pegar o objeto. Já os atores-animadores principiantes fazem o seu braço ceder, diminuem o corpo do boneco para que a sua própria mão junte o objeto.  Esse procedimento inadequado causa muitos problemas à encenação: o público tem dificuldades para ver o boneco, a personagem perde a verossimilhança conquistada, e provoca o riso na platéia oriundo de defeito na manipulação.

Estabelecer o ponto fixo consiste em manter o eixo e o nível do boneco, desafiando a ator-animador a executar outras ações necessárias ao andamento da cena, sem modificar o comportamento do boneco manipulado. O “ponto fixo” é um procedimento que auxilia o bonequeiro em situações nas quais precisa realizar ações simultâneas em cena, como por exemplo: vestir outro boneco de luva; pegar um objeto, ou adereço para agregar à cena enquanto atua com o boneco atrás do biombo, ou manipulando-o à vista do público. Definir e manter o “ponto fixo” colabora para impedir a realização de movimentos involuntários e gestos que descaracterizam a presença do boneco.

Relação frontal – Mantê-la é atuar de forma que o público não perca de vista a face (máscara) do boneco. Quando o boneco realiza ações que escondem totalmente seu rosto por tempo prolongado, é difícil manter o foco e a atenção do espectador na cena. A personagem perde força e dá a impressão de que volta a ser o objeto ou a matéria da qual o boneco é confeccionado.

Movimento é frase – Trabalhar com essa noção supõe ultrapassar a idéia de movimentar aleatoriamente ou sacudir o boneco em cena. Implica em dissecar os movimentos, dando a “pontuação” adequada, incluindo “ponto” e “vírgulas”. Cada ação tem seus movimentos realizados numa seqüência que implica em finalizá-las para depois iniciar o movimento subseqüente. Remete à necessidade de cuidar da finalização de cada gesto ou ação. Ajuda a definir os diferentes ritmos presentes em cada ação. Binômios como ação-reação, imobilidade-movimento, silêncio-ruído, podem ser referências importantes para o ator-animador realizar esse trabalho. Jaques Dalcrose concebeu a noção de “valor plástico e musical do gesto” para o trabalho do ator afirmando:

Toda vez que nossa vontade consciente escolher um ponto de partida para um movimento a ser executado, inicia-se uma nova frase. Já dissemos que a característica de uma frase é a ligação dos elementos que a compõem e que se concluem com um repouso. Estes elementos, porém, podem seguir um ao outro de maneira mais ou menos regular. Uma frase literária pode ser formada por diferentes orações separadas de vírgulas ou de qualquer sinal de pontuação. Diga-se o mesmo para a frase plástica, a qual pode ser composta por orações independentes umas das outras e separadas por paradas. Estas paradas não devem ser confundidas com o fim das frases. O corpo, de fato, fica em um estado de suspensão ativa; observando-o percebemos que haverá mais, porém o momento em que continuará o movimento não está indicado com precisão. (PAVIS:1996, p. 71)

Este princípio transposto para o trabalho do ator-animador constitui uma ferramenta de inestimável valor para a melhoria da sua interpretação.

A respiração do boneco – Fazer com que o boneco “respire” complementa a noção de estar em movimento, de estar vivo. Encontrar o movimento justo para dar a idéia de que o boneco respira exige a ampliação desse movimento, uma vez que o boneco “respira” com o corpo inteiro Por isso, o ator-animador busca encontrar o movimento justo, para dar veracidade a essa respiração. Muitas vezes o boneco “respira” em sintonia com a respiração do seu animador. Muitos gestos são impulsionados pelo ato de inspirar. As emoções vividas pela personagem-boneco também estão relacionadas com a inspiração/expiração: reagir com raiva implica em respirar de forma distinta à que ocorre ao receber um afago. É necessário longo tempo de “convivência” com o boneco para encontrar o movimento justo. Trata-se de um movimento dilatado, diferente do ato de respirar humano, mas fundamental para dar qualidade a sua atuação. Quando a respiração é feita adequadamente, o boneco parece vivo e sua atuação torna-se convincente.

A “neutralidade” do ator-titeriteiro em cena – Este princípio tem gerado muitas controvérsias, porque é difícil conceber a idéia de presença neutra na cena, uma vez que tudo o que está no palco adquire significado. A “neutralidade” é aqui concebida como predisposição do ator-animador para estar a serviço da forma animada, tornar-se “invisível” em cena, atenuar sua presença para valorizar a do boneco. Supõe eliminar caretas, suspiros, olhares e economizar gestos do ator-animador para evidenciar as ações do boneco. Trata-se de trabalhar com a noção de consciência de estar em cena, o que exige movimentos comedidos, discretos, elegantes, suficientes para que se remeta o foco das atenções ao boneco presente na cena e não ao seu animador. Quando os gestos do ator-titeriteiro e sua presença são mais eloqüentes que a presença do boneco, cria-se um duplo foco que desvaloriza a cena.[1]

Dissociação é um princípio que pode ser trabalhado sob diferentes concepções. Alguns bonequeiros o definem como o desafio de tornar os movimentos do boneco, independente dos movimentos do corpo do ator-animador. O objetivo é impossibilitar o espectador de estabelecer associações entre o boneco e o manipulador para dar mais credibilidade à atuação do boneco, para não tornar visível que o “boneco é manipulado”. No entanto, para outros, dissociação consiste em fragmentar os movimentos do boneco para que o mesmo não se dê num bloco, para que não seja compacto. Isso colabora para propiciar uma atuação anti-natural sem perder a fluidez. Para realizar esse procedimento de modo eficaz é importante o titeriteiro praticar a dissociação do movimento inicialmente no seu próprio corpo. É produtivo realizar um movimento e depois fragmentá-lo de modo a perceber claramente como o mesmo se constitui.

Dissociação também consiste na capacidade do bonequeiro  manter a postura de um personagem manipulado pela mão direita sem perder as características de outro personagem que se encontra na mão esquerda:

Há um grande número de bonequeiros solistas que utilizam esta técnica para desdobrar-se em múltiplos personagens, porque podem, além de manipular um boneco em cada mão, mudar de personagem mediante pequenos truques e mentiras, sem perder o fio narrativo. (AMORÓS e PARICIO, 2000, p. 102)

Apresentação do boneco – este princípio é comumente executado de duas maneiras: a tradicional e a silenciosa. A apresentação tradicional se dá quando o boneco surge na boca de cena e diz seu nome: “Meu nome é Tiridá, Tiridá véio da fiança, cabelo no peito aqui dá trança; Mundrunga é pau de gereba, pau que inverga, mas num quevra; querido das meninas, dador de lapada, endireitador de corcunda, comigo é o seguinte: escreveu num leu a manjuruba aqui, come no centro!” (Professor Tirirdá in ESCUDEIRO, 2007:95). Este modo de apresentação é largamente usado nas formas tradicionais de teatro de bonecos. No mamulengo, assim como em outras formas de teatro de bonecos popular do Brasil, este recurso é amplamente utilizado para identificar a personagem junto ao público, e provocar do riso.

O outro modo aqui denominado de apresentação silenciosa ocorre quando o boneco entra em cena e olha para a platéia durante alguns segundos antes de iniciar suas ações. O tempo de apresentação é realmente muito curto, apenas três segundos, mas é suficiente para o público identificar a figura, a forma animada.

Concentração – é uma ferramentas imprescindível para o trabalho do ator-animador. Os caminhos para se obter a concentração são os mais variados e não cabe aqui descrever as múltiplas opções e treinamentos para obtê-la. É importante perceber que a concentração também resulta da auto-observação, da descoberta de diferentes estados corporais como tensão e relaxamento. E que a qualidade da atuação do ator-animador depende fundamentalmente de sua concentração.

Quando o ator-animador conhece esses princípios técnicos, certamente realiza melhor o seu trabalho, o boneco ganha credibilidade em cena, se torna verossímil e dá a impressão de que possui vida própria. Isso também ocorre quando o ator-animador está imbuído do que diz Brecht: “há muitos objetos num só objeto” (BRECHT apud KOUDELA, 1991, p. 80). Ou seja, ver além do aparente, olhar mais profundamente e ver a possibilidade do movimento, o “vir a ser” contido em cada objeto ou boneco. A técnica ou a qualidade da animação nasce desse tipo de concepção, aliada, naturalmente, ao exercício diário, ao trabalho paciente e prolongado. Ao mesmo tempo, vale repetir, os princípios acima arrolados não podem ser vistos como “camisa de força” porque não são regras fixas e imutáveis.

 

Para finalizar…
O ator-animador é, antes de tudo, um profissional de teatro, um intérprete, porque teatro de animação não pode ser concebido e estudado separadamente da arte teatral.

Esse profissional é, sobretudo, um artista capaz de elaborar uma linguagem própria e singular que não é a do ator e também não é a de um simples manipulador de objetos, pois domina múltiplos conhecimentos para a realização do seu trabalho.

O conhecimento necessário ao trabalho de ator ainda que seja indispensável para sua atuação, não é suficiente. Ser ator não significa, necessariamente, ser ator-animador. A animação do objeto, incumbência principal do ator-animador exige o domínio de técnicas e saberes que não são necessariamente do conhecimento do ator. Ao mesmo tempo, é preciso salientar que se o ator-animador se confina nas especificidades desta linguagem, dissociando-se do trabalho do ator, tem uma atuação incompleta e inadequada. Ou seja, o ator-animador não pode prescindir dos conhecimentos que envolvem a profissão de ator.

É possível considerar o teatro de títeres como uma linguagem com regras próprias, que estão em permanente processo de transformação, portanto são atualizadas, recriadas ou superadas. Os acontecimentos mais recentes nos distintos campos das artes revelam mudanças, evidenciando um movimento em direção à ampliação das formas de atuação, que se mesclam com outras linguagens artísticas.

 

 

Referências

 

AMARAL, Ana Maria. O ator e seus duplos. São Paulo: SENAC/EDUSP, 2002.

AMORÓS, Pilar; PARICIO, Paco. Títeres y Titiriteros: El Lenguaje de los Títeres. Binefar: Pirineum, 2005.

ANDRADE, Milton de; PETRY, Samuel Romão. As matrizes corporais da maricota: um estudo sobre o Boi-de-Mamão. In Revista Móin-Móin N.° 3. Jaraguá do Sul: SCAR-UDESC, 2007.

BELTRAME, Valmor. Animar o Inanimado: a formação profissional no teatro de bonecos. Tese – Doutorado – ECA/USP. São Paulo, 2001.

BOURDEL, Hélène. L’Art du Marionnettiste: imagination et création. Saint Denis: Université Paris III, 1995.

DEFRENNE, Mikel. Estética e Filosofia. São Paulo: Perspectiva, 1998.

ERULI, Brunella. Le dernier pas dépend du premier. In PUCK. La Marionnette et les Autres Arts. N.° 7. Charleville-Mézières: Institut International de le Marionnette, 1994.

ESCUDEIRO, Angela. O Bonequeiro de Escada. Fortaleza: IMEPH, 2007.

GERVAIS, André-Charles. Gramática Elementar para Manipulação de Bonecos de Luva. Trad.: Álvaro Apocalypse. Paris: Bordas, 1947.

KOUDELA, Ingrid. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991.

MANGANI, Adelaida. Taller Escuela de Titiriteros del Teatro General San Martin. Buenos Aires. Mimeografado, 1998.

MESCHKE, Michael. Una estética para el teatro de títeres. Bilbao: Instituto Iberoamericano, 1988.

NICULESCU, Margareta. L’Ecole Supérieure Nationale des Arts de la marionnette. Charleville-Mézières: Institut International de la Marionnette, 1998.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.

PAVIS, Patrice. De Stanislvaski a Wilson: antologia portatile sulla partitura. In MARINIS, Marco De. (org.). Dramaturgia dell’attore. Trad.: Paolo Dodet e Monica Siedler. Porreta Terme: I Quaderni del Battello Ebbro. 1996.

 


* Doutor em Teatro, Professor de Teatro de Animação,  e no Programa de Pós-graduação da UDESC

[1] Em O Ator e Seus Duplos (2001) Amaral discute esse tema e propõe uma série de exercícios para a compreensão e domínio desse princípio técnico.

Texto gentilmente cedido pelo autor.


Teatro de Bonecos e a Animação à Vista do Público

21/08/2010

por Valmor Beltrame e Alex de Souza
CEART – Centro de Artes da UDESC.

.

RESUMO:  A  animação  de  bonecos  à  vista  do  público  é  uma  linguagem  que compõe o teatro de animação e cada vez mais se percebe a sua utilização. Enquanto recurso cênico, encontra-se a  sua recorrência desde o Japão no século XVIII, mas principalmente após  a  segunda metade do  século XX  a  animação de bonecos  à  vista do público vem  se disseminando e desenvolvendo, ganhando características que a destacam como linguagem e provocam transformações na poética do teatro de animação.

.

PALAVRAS-CHAVE:  Teatro  de  Bonecos;  Transformações  no  Teatro de Animação; Animação à vista do público; Características da linguagem.

.

Uma característica interessante do nosso teatro de animação contemporâneo é, sem dúvida, a  diversidade  e  o  hibridismo  das  linguagens  que  o  compõe.  Entre  as  diversas possibilidades  de  linguagem,  uma  particularmente  interessante  e,  atualmente  muito recorrente, é a animação à vista do público. Trato aqui a animação à vista do público como sendo uma linguagem, considerando que esta escolha exige uma concepção de espetáculo diferenciada, assim como a dramaturgia, a confecção dos bonecos, a  iluminação, o espaço cênico, a preparação do animador e, conseqüentemente, a relação com o público.

Além  dos  aspectos  que  determinam  as  especificidades  desta  linguagem, é importante considerar o desenvolvimento da animação à vista, pois ele está intrinsecamente relacionado com a construção histórica do teatro de animação contemporâneo. E é por este último viés que se pretende encaminhar o presente artigo.

.

Influências do Oriente

Possivelmente uma das maiores influências no recorrente uso da animação à vista do público vem do Bunraku. Esta arte teatral japonesa, composta por três distintas partes – a narração épica, a música instrumental e a animação de bonecos – que se complementam, possui algumas peculiaridades no que se refere à animação dos bonecos.

Até  o  início do  século XVIII,  as  representações do  ningyô  jôrur eram  feitas  de forma  que  os  animadores  ficavam  ocultos  do  público  e  havia  um  animador  para  cada boneco.  Eles  somente  começam  a  ganhar  visibilidade  perante  o  público,  tal  como conhecemos  hoje,  a  partir  de  1705,  atendendo  ao  apelo  visual  dos  espectadores  que desejavam conhecer os habilidosos artistas (KUSANO, 1993).

Cerca de trinta anos depois surge outra característica marcante desta arte:  a utilização  de  três  animadores  em  cada  um  dos  bonecos  que  representam  personagens principais da narrativa. Para dar mais realismo e precisão aos movimentos, cada animador é responsável por uma parte do boneco, de acordo com uma hierarquia. O menos experiente, anima os pés; o de nível intermediário é responsável pela mão esquerda do boneco e o mais graduado  anima  a  cabeça  e  o  braço direito,  além  de  sustentar  a maior  parte  do  peso  do boneco em seu antebraço esquerdo.

No entanto, para evitar que este grande volume de pessoas atrás do boneco desvie toda  a  atenção  dos  espectadores,  os  animadores  vestem-se  inteiramente  de  negro.  Desta forma,  convenciona-se que eles não existem, apesar de  ser visível o contorno dos corpos humanos por trás dos personagens.

Quando a cena a ser representada é de difícil execução ou exige uma grande dramaticidade, os três animadores cobrem-se totalmente, incluindo as mãos  e  a  cabeça.  Em  outras  cenas,  o  animador-chefe  deixa  à  vista  seu  rosto  e  usa  até mesmo  um  figurino  com  cores, mantendo  sempre  a  neutralidade  de  seu  rosto,  evitando demonstrar qualquer expressão ou reação.

Na década de 1960, um grupo de artistas japoneses fez uma turnê pela América do Norte, apresentando o Bunraku nos Estados Unidos e no Canadá. Esta arte japonesa já era conhecida no ocidente através dos relatos de viajantes que o tinham assistido no Japão, mas a partir desta primeira turnê ele desperta mais o interesse ocidental, especialmente por parte dos bonequeiros que começam a se apropriar de algumas de suas características, entre elas, a animação à vista do público.

As  apropriações  ocidentais,  em  geral,  não  procuraram  reproduzir  totalmente  o Bunraku, uma vez que  as diferenças  culturais  são muito  grandes e uma parte dos  signos nem poderia  ser  compreendido por  uma outra  cultura. Talvez por  isso  tenham-se criado, com  o  passar  do  tempo,  algumas  confusões  na  denominação  de  técnicas  específicas relacionando-as com a arte japonesa que as disseminou.

É  freqüente  não  só  os  bonequeiros,  mas  até  mesmo  literaturas de  teatro  de animação definirem  a  animação direta  como  sendo uma  “técnica Bunraku” ou definirem um  espetáculo  que  utiliza  a  animação  à  vista  do  público  como  sendo  um  espetáculo  de Bunraku. Para esclarecer, o Bunraku não é somente uma técnica ou um recurso, mas uma arte  complexa,  composta  por uma  diversidade  de  linguagens,  técnicas  e  recursos,  dentre estes, a animação de bonecos à vista do público. Mesmo quanto à animação dos bonecos de forma  direta,  há  controvérsias  discutíveis, pois os  animadores  japoneses movimentam  as distintas partes do boneco através de extensores e mecanismos.

O  único  espetáculo  que  pode  ser  chamado  genuinamente  de  Bunraku  é  aquele produzido  em Osaka,  pela Companhia  Bunraku-za,  do  Teatro  Nacional  de Bunraku.  Os outros são apropriações de técnicas ou releituras do gênero.

.

Apropriação européia na metade do século XX

No  início  do  século  XX  algumas  experiências  procuravam  renovar  o  teatro  de bonecos  europeu,  seguindo  as  vanguardas  artísticas.  No  entanto,  as  rupturas  mais significativas surgiram ao fim da Segunda Guerra Mundial. Neste período de reestruturação social  e  política  de  muitas  nações,  os  antigos  valores  começaram  a  ser  fortemente questionados  e  o  teatro  de  bonecos  clássico,  predominante  até  então,  começou  a  ser também discutido e outras formas foram experimentadas.

Este teatro de bonecos clássico pode ser definido como um teatro homogêneo, onde não há o destaque de outros meios de expressão e todos os elementos da encenação estão à serviço unicamente do boneco. Em contraponto iniciou-se o desenvolvimento do teatro de bonecos  heterogêneo,  que  busca  justamente  a multiplicidade  de meios  expressivos  para compor um único trabalho artístico (JURKOWSKI, 2000).

Assim, as outras partes constitutivas da encenação, como o cenário, a música e até mesmo  a  atuação  do  bonequeiro,  passaram  a  ter  tanto  valor  em  cena  quanto  o  próprio boneco.  Já não  se buscava mais esconder  todos os procedimentos  técnicos  e  criar  a  total ilusão de que os bonecos possuíam vida própria. A partir desta  forma de pensar, surgiram com mais  freqüência  bonequeiros dividindo  a  cena  com  seus bonecos. A  recorrência  da animação à vista na Europa nesta época gerou  inúmeras discussões, dividindo os  artistas.

Refletindo sobre estes  conceitos  de  teatro  de  bonecos  homogêneo  e  heterogêneo, JURKOWSKI (2000, p.63) observa:

Esse teatro de bonecos homogêneo não é nada mais do que um teatro de bonecos não contaminado por outros meios de expressão. Ele possui  todas as condições para desenvolver seu próprio estilo, sem medo de perder seu público. O público aceita  a  presença  do  boneco  clássico,  contrariamente  a  certos  artistas.  Aliás, engana-se quem  imagina que o surgimento do teatro de bonecos com meios de expressão  variados  resultou  do  esgotamento  do  teatro  de  bonecos homogêneo.[…] Eles  coexistem  com o  teatro de bonecos heterogêneo e os dois polarizam  o  interesse  de  diferentes  artistas.  O  desenvolvimento  das  artes,  a estilização  plástica  e  gestual  oferecem  as  condições  de  uma  profunda transformação para o teatro de bonecos clássico. Não é, pois, surpreendente que este  teatro  tenha  tido uma quantidade  tão grande de  adeptos. Por outro  lado, o fato  de  que  estes  bonequeiros  tenham  se  sentido  ameaçados  pela  pressão  dos modernos, era muito mais surpreendente!

No  início da década de 1950 muitos bonequeiros  não  aceitavam  esta presença do animador em cena, mas ao final da década alguns destes mesmos artistas já haviam mudado de  idéia. Um  exemplo  disto  é mencionado  também  por  Jurkowski  (2000)  com  relação  a Hans Richard Purschke, que em 1953 escreveu um  texto declarando-se contra a presença simultânea   do boneco e  animador em  cena,  alegando que a presença do  animador dá  ao espectador a possibilidade de perceber a verdadeira natureza inerte do boneco, rompendo o encantamento e a ilusão que estas figuras provocam no público. No entanto, no ano de 1958 Purschke demonstra  aceitar  a  animação de bonecos  à  vista do  público  e  publica  em  sua revista chamada “Perlicko-Perlacko”, um texto de Tankred Dorst que defende e incentiva a desmistificação na animação de bonecos, exibindo ao espectador tudo aquilo que até então procurava-se ocultar, inclusive o animador (JURKOWSKI, 2000). Na  década  de  1960,  a  discussão  a  respeito  da  animação  à  vista  não  estava  tão relacionada à presença ou não do animador, mas se dava predominantemente a respeito das motivações de colocá-lo em cena. Conforme discorre Jurkowski (2000, p.78),

Os  valores  semânticos  da  representação  foram  implicitamente  modificados  e ninguém levantou questões sobre a contribuição artística da animação à vista. E de  que  ela  pudesse  mudar  a  expressão  artística  do  boneco.  Para  muitos bonequeiros, constatar que existe uma diferença entre dois tipos de animação (à vista  ou  oculta)  basta-lhes  para  adotar  esse  princípio  como  nova  norma  da modernidade e praticá-la.

E esta  prática,  de  certo modo,  exigiu  dos  bonequeiros  um  desenvolvimento mais aprimorado  das  suas  técnicas  teatrais.  Numa  linguagem  que  começava  a  se  tornar heterogênea, não bastaria mais  ter  somente bonecos bem  construídos. A interpretação do bonequeiro  se  destaca,  estando  ele  visível  ou  não,  e  novas  denominações  passam  a identificar  estes  artistas. Assim encontramos o ator-manipulador,  ator-bonequeiro  e  ator-animador,  como  alguns exemplos de nomenclaturas  que procuram  associar o  trabalho do ator ao trabalho do animador

Talvez o período de maior força na disseminação e desenvolvimento da animação à vista, aconteceu na  década de  1970. A UNIMA tem uma  participação  importante neste processo,  pois  é  com  os  congressos  e  festivais  internacionais  por  ela  promovidos,  que artistas  de  vários  países  do  mundo  têm  a  possibilidade  de  refletir  e  discutir  sobre  esta linguagem. No espaço de  tempo  de  aproximadamente duas décadas,  o  que  em  princípio poderia ser apenas um recurso cênico ou uma técnica, consolidou-se como uma linguagem com características próprias no Teatro de Animação.

.

Desenvolvimento e diversidade técnica

Com o desenvolvimento das linguagens no Teatro de Animação, especialmente na segunda  metade  do  século  XX,  surgiram  também  novas  possibilidades  e  desafios  ao bonequeiro à vista do público. Segundo Michael Meschke (1985, p.32),

Podemos  destacar  entre  as  diversas  modalidades  de  animação  à  vista,  as  que seguem:

•  O animador visível, porém neutro na cena: Neste modo, o bonequeiro não possui uma  função  ativa como personagem. Ele pode  ser metaforicamente uma “sombra” do boneco, como ocorre no Bunraku. O bonequeiro é um corpo dissimulado ao fundo do espaço cênico, ou simplesmente alguém que comanda os movimentos do boneco. Sua movimentação  e  presença  não  ganham  destaque,  podendo  assim,  ser  aceito  em convenção com o público como algo que não existe. Segundo Valmor Beltrame (2003, p.48)

Trata-se de trabalhar com a noção de consciência de estar em cena, o que exige movimentos  comedidos,  discretos,  elegantes,  suficientes  para  que  se  remeta  o foco das atenções ao boneco presente na cena e não ao seu animador. Quando os gestos do  ator-titeriteiro e sua presença são mais  eloqüentes que  a presença do boneco, cria-se um duplo foco que desvaloriza a cena.

•  O  animador  à  vista  do  público  como  parte  integrante  do  cenário:  Nesta modalidade o bonequeiro mantém as características do animador visível, porém neutro na  cena,  diferenciando-se  pelo  fato  de  que  seu  corpo  e  figurino  compõem  o  espaço metafórico  de  representação,  o  cenário.  Seu  figurino  colabora  para  criar  a  noção  de lugar ou ambiente, o que minimiza a presença do animador e ele não se configura como personagem da narrativa, ou  seja, ele não  interfere no desenvolvimento das ações dos personagens enquanto uma presença ativa em cena. Isto o  justifica como um elemento de dupla função, pois além de animar o boneco ele situa o espaço cênico.

•  O  animador  assume  seu  corpo  em  cena  sem  representar  um  personagem: O animador atua não representando personagens enquanto anima o boneco. Neste modo, o bonequeiro tem a liberdade  de  relacionar-se  diretamente  com  o  personagem-objeto, criando  contrapontos  entre  o  ser  vivo  e  a  matéria  inerte  que  aparenta  ter  vida. Freqüentemente acontece deste animador atuante explorar as relações de dependência e independência  entre personagem-objeto  e  animador,  como  afirma Meschke  (1985,  p. 35)

Essa missão pode consistir em mostrar uma relação de contraponto com o títere como manifestar a  total  dependência  do  títere  ao  titeriteiro:  sem  este  não  há vida!. Ou ao contrário. Pode intensificar-se até resultar em uma competição entre títere e manipulador e em conflitos entre  eles. Mas o manipulador segue sendo manipulador e sua participação no que acontece é como tal.

• O animador é o duplo do personagem-objeto: Desta forma o animador está em situação  de  interpretação  em  paridade  com  o  boneco.  Sua relação com o  boneco geralmente  não  é  de  disputa,  mas  de  complementaridade  e  formam  o  duplo  da personagem. Eles atuam muitas vezes em  diferentes  planos  ficcionais.  Desta relação podem nascer diversos conflitos dramáticos, inclusive relativos à autonomia do boneco. Ao discorrer  sobre  a  dramaturgia  nesta  possibilidade  do  animador  como  um  duplo, Felisberto Sabino da Costa (2000, p.45) escreve:

No que  diz  respeito  ao  signo  interposto  entre  o  ator-manipulador  e  público, utilizando-se  tamanhos  diferenciados  de  personagens  e  objetos,  os  efeitos cênicos  daí  decorrentes  proporcionam  conflitos  dramáticos  visuais.  Ator e boneco, ao representarem o mesmo personagem, criam inúmeras possibilidades fantasmáticas conflituais.

Michael  Meschke  (1985,  p.33)  denomina  esta modalidade  como  “Bonequeiro  como Contraparte” e Rafael Curci (2000, p.124) denomina de “Co-presença” ao escrever:

Mediante  o modo  de  co-presença  a  identidade  do  personagem  se  completa  de alguma  maneira  com  a  voz  e  os  gestos  residuais  –  inclusive  os  faciais,  por menores que sejam – que o titeriteiro confere ao títere (muitas vezes sem querer) durante o ato interpretativo. Desde o ponto de vista físico são dois corpos que, de alguma  maneira,  têm  a  intenção  de  fusionar-se  para  plasmar  uma  identidade cênica,  a  do  personagem. Mas por mais  cuidado  que  tenha  o manipulador  ao mostrar-se  com seus títeres frente ao público, sua co-presença será sempre aceita como  dizemos,  por  pura  convenção  […].  (tradução minha do  trecho. Grifos  do autor).

•  O  animador  representa  simultaneamente  dois  personagens –  o  vivido  pelo boneco  e  o  representado  por  ele:  A  realização  deste modo  de  atuação  torna-se mais complexa, uma vez que o animador tem de interpretar dois personagens distintos quase simultaneamente,  exigindo  a  construção  e  o  desenvolvimento  de  todos  os  aspectos destes  personagens no  plano  ficcional  em que  se  encontram. Neste  caso,  o  animador também necessita  ter um conhecimento apurado não só das particularidades da arte da animação, mas  também  das  particularidades  da  interpretação  do  chamado  “teatro  de atores”.  Compreende-se  que  especialmente  nesta  modalidade,  nem  todo  ator  é  um bonequeiro,  mas  todo  bonequeiro  necessita  ser  um  ator.  Segundo Michael Meschke (1985, p.35):

Embora  ambas  profissões  estejam  orientadas  ao  teatro,  o  ponto  de  partida  e  os métodos de trabalho são completamente distintos para o titeriteiro e para o ator. Aquele  que  o  compreende,  respeita  ambas manifestações  artísticas.  Uma  boa representação  de  títeres  exige  concentração  total.  Nela  há  determinados momentos  de  uma  técnica  e  uma  precisão  física  que  para  o  ator  são desconhecidos.  As  exigências  a  que  está  submetido  o  titeriteiro  são suficientemente grandes para ocupar-lhe inteiramente. E o mesmo se pode dizer a respeito do ator, partindo de outro ponto de vista.

Independentemente do modo como se apresente o animador, é importante levar em consideração o fato de que tudo o que está em cena representa algo e tem alguma função. A animação à vista do público traz grandes possibilidades expressivas que podem ser também traiçoeiras, pois  facilmente o artista se perde no exibicionismo deixando de cumprir a sua função fundamental, que é a de animar o boneco.

Estes são apontamentos que abrem a discussão sobre a animação à vista do público. A atuação do animador visível ao espectador gera inúmeras reflexões e encaminha para a necessidade  de  pesquisas,  pois  é  uma  linguagem  que  ainda  se  encontra  em  pleno desenvolvimento e pode ajudar a esclarecer as tendências de nossa arte contemporânea.

.

REFERÊNCIAS

BELTRAME,  Valmor.  O  Trabalho  do  Ator-Bonequeiro.  Revista  NUPEART, Florianópolis, SC, v.2, n.2, p. 33-52, set. 2003.

COSTA, Felisberto Sabino da. A Poética do Ser e Não Ser: Procedimentos dramatúrgicos do  teatro  de  animação. Tese  de Doutorado  defendida  no  Programa  de  Pós-graduação da ECA/USP. São Paulo, 2000.

CURCI, Rafael. Dialéctica del Titiritero em Escena: Uma propuesta metodológica para la actuación con títeres. Buenos Aires: Colihue, 2007.

.

Este artigo, com algumas modificações, foi publicado no livro “Teatro de Bonecos: Distintos olhares sobre teoria e prática”, Udesc, 2008 e foi oriundo da Pesquisa “Teatro de Bonecos: transformações na poética da linguagem”, CEART/UDESC, orientado por Valmor Beltrame, professor do Departamento de Artes Cênicas, CEART/UDESC. Originalmente disponível no site DA Pesquisa – Revista de Investigação em Artes – Centro de Artes da UDESC.