Entrevista com Roman Paska

Por Tiago Bartolomeu Costa
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É uma das figuras mais carismáticas do teatro de marionetas, que conhece em todos os seus estados, da rigorosa tradição oriental ao cabaré. Não andam sozinhas, admite, mas são criaturas prodigiosas, talvez até sobre-humanas
O nova-iorquino Roman Paska é uma autoridade no que respeita às marionetas. Foi director do Instituto Internacional da Marioneta, em Charleville-Mézières, França, e tem percorrido os mais prestigiados festivais de teatro do mundo. Em Portugal esteve por cinco vezes: em 1990, na Bienal de Marionetas de Évora (“Ucelli, as Drogas do Amor”), em 1993, 1994 e 1998 no Festival Internacional de Marionetas do Porto (“O Fim do Mundo”, “Moby Dick in Porto” e “Dieu! God Mother Radio”, respectivamente), e já este ano no Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas, em Lisboa (“Schoolboy Play”). As suas peças – nos últimos anos divididas nos ciclos “Theatre for Birds” e “Dead Puppet” – caracterizam-se por uma forte dimensão visual, com a convergência de diferentes meios a resultar em espectáculos que resgatam a marioneta do servilismo e da ritualização que são contrarios ao seu potencial dramatúrgico.
Amplamente devedor dos ensinamentos recolhidos nos anos passados no Oriente, Paska foi construindo uma reflexão em torno da marioneta que, não rejeitando embora a sua dimensão sagrada, a ultrapassa para comunicar. Em conversa com o Ípsilon, fala-nos do universo particular onde a marioneta reside, onde residimos todos.

O discurso comum sobre marionetas tende a enfatizar um lado ritualista que, no seu entender, é contraproducente para uma reflexão mais séria sobre a importância desta disciplina…

A utilização do termo ritual não é incorrecta, mas não deve servir para caricaturar o que se faz. É verdade que eu prefiro pensar nas marionetas como objectos sagrados, e nós tendemos a tratá-las como objectos sagrados, uma vez que são construídas com muito cuidado e são extremamente frágeis. Elas impõem as suas próprias regras. É como se estivéssemos a trabalhar com cascas de ovo. É preciso um treino particular para se lidar com elas. A analogia mais comum é que elas são como os instrumentos musicais.

Porque cada uma produz um som diferente?

Também por isso, mas porque é preciso, por exemplo, ter um cuidado extremo quando se toca uma passagem muito dramática num violino, de modo a que não se rompa uma corda. Esse cuidado com que se manipulam as marionetas, essa precisão, obriga a que seja tudo muito coreografado. Isto não varia muito de país para país, independentemente da técnica usada. Há países com tradições particulares, como é o caso da Indonésia, onde as marionetas são, de facto, tratadas como objectos sagrados e, alegadamente, encarnam deuses. Há imensa superstição no que respeita à relação entre a marioneta e o manipulador. Preocupamo-nos com o lugar onde ficam,, como são levadas da sua casa para os palcos…

Ao longo dos anos tem insistido que a técnica, as “habilidades” dos marionetistas, não são o mais importante…

Sim, é verdade. Há muitas peças que se sustentam na técnica ou na tecnologia da própria marioneta. E há uma tradição secular de cabaré de marionetas, ou de feira, que coloca o foco no virtuosismo do marionetista, que eu acho um embuste. Sim, é verdade que há uma primazia da técnica, mas eu não acredito numa marioneta ao serviço da técnica, nem numa marioneta ultrapassada pelos seus mecanismos artificiais. Não uso marionetas por estar interessado no seu potencial técnico. Acredito, realmente, que seja uma forma de arte, tal como a pintura, ou a dança ou qualquer outra disciplina. Uso as marionetas porque me permitem, através do seu potencial expressivo, falar de um tema que me interesse, e para o qual não consigo encontrar nenhum outro meio paralelo.

É assim que interpreta o seu papel enquanto artista?

Eu acho que, mais do que se nascer marionetista, se é atraído para este universo porque se encontra aqui uma forma natural de expressão. Mesmo que eu quisesse fazer uma outra coisa com as marionetas, por exemplo uma instalação, acho que seria sempre trazido de volta a esta linguagem que, para mim, é como a poesia. Gosto de pensar nas peças como uma forma de teatro poético que tem o seu próprio vocabulário, e parte disso é, de certa forma, intrínseco às marionetas. Cada linguagem tem as suas regras, e até mesmo as suas limitações… Enfim, no caso das marionetas, elas não andam sozinhas… [risos]

Quando diz que utiliza as marionetas porque com elas pode dizer o que não  consegue através de outros meios, nomeadamente com actores, está a referir-se ao poder metafórico subjacente à marioneta?

Sou menos ambicioso quanto à ideia de metáfora, porque gosto de acreditar que a marioneta não está a representar outra coisa que não ela mesma. Nós sabemos que um actor, no fim da representação, vai para casa, sob o seu próprio nome. A personagem, nessa altura, torna-se completamente abstracta e é activada, por exemplo, somente quando veste as roupas que lhe pertencem. A marioneta, por sua vez, pode representar uma personagem, mas é também um objecto com um universo próprio. Ela não existe se não para aquela personagem, não tem uma outra vida. Ou, se a tiver, talvez seja a misteriosa vida de um objecto.

As marionetas são complementares dos actores na pesquisa teatral?

Sim, é bem verdade. E esse é um princípio importante. Primeiro porque não há acção sem a presença de intérprete. E é isso que me perturba quando vejo espectáculos que aplicam mal a técnica. Nunca me consigo esquecer que as marionetas não existem sozinhas. Não são autómatos. Não se pode dizer “a marioneta faz isto, o actor faz aquilo”, porque a marioneta não existe sem o marionetista e este tem de ser um actor, um bailarino, um performer. É através do que ele faz com a marioneta que ela surge em todo o seu esplendor. No teatro de marionetas de tradição asiática, por exemplo, o actor está muito mais visível e perto da marioneta, seja na ópera, nas máscaras do Bali, ou no teatro kabuki. Isso reforça a ideia de que as marionetas não expressam nada, nem sequer estados psicológicos, sozinhas. Embora haja peças que eu preferiria que fossem feitas por marionetas do que por actores em registo naturalista…

Isso muda quando as marionetas passam a representar figuras concretas? Em “Schoolboy Play”, o espectáculo que trouxe a Lisboa, em Maio, as marionetas representavam Hitler e Wittgenstein, figuras com uma biografia.

Belíssima pergunta. O ponto de partida de “Schoolboy Play” é um eventual encontro histórico entre duas figuras icónicas do século XX. Quando estávamos a criar as marionetas, tivemos o cuidado de lhes dar outros nomes, como “Hitch” e “Witch”, porque era desconfortável estarmos a dizer que essas duas figuras históricas eram marionetas. Criámos, por isso, uma distancia em relação à História, da qual a peça parte, sem que se feche – e com ela o poder simbólico das marionetas – nela.

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"Schoolboy Play" - Dead Puppet

 

Porque o impacto dramatúrgico podia ser distorcido se a identificação fosse feita sem filtragem?

Bom, as peças devem sempre ser auto-suficientes. Passa-se o mesmo quando vemos Shakespeare representado hoje. Aquelas personagens existem autonomamente e esperamos que o mundo que constroem seja baseado em premissas estimulantes e até mesmo provocadoras. No caso de “Schoolboy Play”, o único aspecto histórico que utilizamos é absolutamente académico: a hipótese de um encontro entre Hitler e Wittgenstein num colégio austríaco quando teriam 14 anos. Claro que, pelo que sabemos das suas vidas, esse encontro, a ter acontecido, terá sido explosivo. Mas nenhuma das personagens é a protagonista da história. A protagonista é uma marioneta à qual damos o nome de Everyboy e a peça é, de facto, sobre a interacção dessa terceira personagem com as outras duas figuras. O convite que fazemos é para uma identificação no sentido clássico do termo, através do drama dessa terceira personagem.

Será por isso que, nos seus espectáculos, as marionetas não são o elemento principal?

Sim, mesmo que as marionetas estejam no centro do palco. Elas são a paisagem da peça. O propósito é criar um diálogo, ou uma interacção, entre as marionetas e o seu subconsciente. Quando elas estão em cena, estão visíveis, mas aquilo de que falam é invisível. E é nesse sentido, para regressarmos à ideia de religioso e sagrado, que é importante que percebamos que o que elas fazem é verbalizar esse invisível. Há algo de ritualista nisso, admito.

Quando vemos um manipulador a trabalhar com um objecto, há algo nesse acto que gera um fascínio. E isso passa para o público. Acredito que a marioneta desperta, ou estimula, no espectador um conjunto de emoções que não são nem transmissíveis nem definíveis. É algo que existe num plano psicológico, como quando vemos Hamlet a segurar na caveira, ou a falar para o espelho. Vêem-se outros aspectos da natureza humana.

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Vídeo:

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Publicado originalmente em Ípsilon em 05.08.10

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